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Haverá Alternativa à Prática Adquirida das Reprovações?
 
Gostei de ver, no Eixo do Mal, o problema das reprovações tratado fora da escola, com outra lógica: a da cidadania. Gostei de ouvir o Daniel Oliveira chamar “deprimente” à polémica que, sobre este tema, se desenrolou, a propósito do Programa do Governo. Triste é, para mim, a dicotomia “chumba”/não “chumba”, sem qualquer outra ponderação, que se verifica na maioria das práticas do sistema escolar, por vezes parecendo indiferentes ao que acontece à criança que, com isso, sofre. Gostei de ver colocada, pelo Daniel Oliveira, a questão de saber o que acontece a quem chumba. Na maior parte das vezes, “dá-se-lhe mais do mesmo”, mostrando-se o sistema indiferente à identificação e correção das causas que levaram à reprovação.
 
A maioria das reprovações no Ensino Básico
Sabemos que haverá crianças, ou adolescentes, que terão alguma dificuldade, de ordem psicológica ou mesmo de motivação; sabemos que outras sofrem de problemas, mais ou menos graves, de ordem social ou familiar. Mas, o que os números mostram, e a sociologia da educação – que foi sendo retirada das escolas de formação de professores! – explica, é que  grande parte dos alunos que reprovam tem caraterísticas comuns, tendo na sua origem as baixas qualificações escolares dos pais. Como estas crianças não são menos dotadas do que outras, teremos de concordar que a oferta educativa lhes é inadequada.
A sociologia da educação, desde os anos 80, apresenta para este insucesso escolar precoce – surge nos primeiros anos de escolaridade – atribuições causais, primeiro de natureza sociocultural, seguidamente de origem socioinstitucional. É verdade que na origem estará algo de natureza sociocultural mas, aprofundando, encontramos a razão socioinstitucional: a escola não oferece as respostas adequadas.  

Um sistema educativo que se desresponsabiliza 
Pesquisando os fatores socioculturais, encontraremos, nas famílias dessas crianças, duas ordens de razões. Por um lado, ausência de literacia familiar: a prática da leitura e da escrita funcional não existe, o que não permite criar na criança a necessidade e a vontade de ler, não a leva a entender a sua funcionalidade – onde se lê, para que se lê, o que é ler… - nem a ir descobrindo como se organiza a escrita, quais as suas concetualizações. Quando a criança chega à escola, o “PA-PE-PI-PO-PU” não lhes diz nada e não lhe permite fazer os exercícios concetuais que levam à leitura. Mas o que é grave é que esta condição não conduz, apenas, a reprovações à partida. Por razões administrativas ou outras, estas crianças chegam mesmo aos 2º e 3º ciclos sem a competência de literacia estar adquirida. Isto é, não têm a capacidade de extrair o sentido de um texto escrito, necessário ao seu quotidiano (definição de Literacia). Ora, na escolaridade do Ensino Básico, esta competência é necessária, num quotidiano essencialmente letrado, onde é preciso estudar, responder a testes, ler enunciados de problemas. Digamos que não reprovam logo à partida, o sistema vai-as fazendo avançar sem o necessário conhecimento adquirido, até que acabam por reprovar e vir a engrossar os números da morbilidade escolar. 
Uma segunda razão, tem a ver com a ausência de consciência, na família, da importância da escola. Os pais terão para os filhos um projeto de vida, mas ele não passa, obrigatoriamente, pela sua escolarização. A maior parte das práticas escolares são, para eles, incompreensíveis e mesmo ao relacionarem-se com professores ou pessoas escolarizadas, dificilmente conseguem ser por eles esclarecidas. A título de exemplo: podem não saber se uma nota negativa é “bom” ou “mau” (no campo da saúde é normalmente “bom” um determinado exame acusar “negativo”!). A escolaridade obrigatória foi tardia em Portugal e só em 1975 foram criadas condições efetivas para todos frequentarem a escola. A cultura escolar ainda não entrou em todas as famílias. É, por vezes difícil, aos pais, motivar os filhos e orientá-los na complexidade do universo escolar. Com a reprovação destas crianças, também estamos a reproduzir e a acentuar esta cultura.  

Alternativas de natureza sistémica
É isto que faz diferentes estas crianças. Na escola, se não aprende, diz-se que a culpa é da família, que a escola não pode resolver os problemas da sociedade e… torna-se a criança vítima do seu próprio destino. O seu desenvolvimento fica afetado, podendo vir a acarretar outros problemas de inserção social. Mas, se olharmos para todo o sistema educativo, sabemos que esta situação não é fatal. Muita da investigação dos últimos anos tem elucidado este problema e encontrado algumas respostas. No entanto, nem todos estes novos conhecimentos chegam às escolas, aos professores.
Começando pela administração escolar, ter-se-ia de resolver a colocação e garantir, tanto quanto possível, a continuidade dos professores nas escolas. Não é possível, a uma criança de meio não letrado, aprender o que quer que seja com 3 ou 4 professores num ano. E é isto o que se passa em algumas turmas do interior do país e em zonas suburbanas. Será também necessário criar equipas multidisciplinares e habilitar o corpo docente com os conhecimentos necessários às intervenções adequadas. A prevenção parece ser fundamental. Talvez o recurso às tutorias merecesse a pena, nas situações mais difícieis. No entanto, desde o jardim-de-infância, poder-se-iam prosseguir estes objetivos: não se trata de ensinar a ler, mas de utilizar funcionalmente a leitura e a escrita na relação com as crianças e com as famílias. As crianças teriam oportunidade de ser interessadas na escrita e de aprender a descobri-la autonomamente, a saber como, onde, quando se utilizam estes meios e a ir desenvolvendo concetualizações acerca do ato de ler e escrever (psicogénese da leitura e da escrita). Indo mais longe, dever-se-ia começar este processo na creche, tornando até o livro o brinquedo preferido das crianças. Acompanhando este trabalho com a inserção dos familiares, cedo, nas práticas educativas, poder-se-ia encontrar um meio para levar a literacia para a família. Conhecemos boas experiências. 
O sistema educativo teria de chegar aos familiares destas crianças, muitos deles analfabetos – ou não andaram na escola ou foram já vítimas de insucesso – procurando responder às suas necessidades de aprendizagem, consideradas esta como um direito de cidadania. Numa investigação nacional em 2009 tivemos oportunidade de verificar que pais, que estavam em processos de educação de adultos adequados (RVCC) e que tinham, simultaneamente, filhos a frequentar o 1º Ciclo do Ensino Básico, desenvolveram a literacia familiar no contexto doméstico e adquiriram autoeficácia para intervir na escola dos filhos e apoiar as crianças. Se, em Portugal, estes processos fossem generalizados, reconhecidos e apoiados, poder-se-ia inserir esta perspetiva nos programas de combate ao insucesso escolar e todos ganhariam: as crianças, os adultos, a sociedade, o desenvolvimento do país. Será necessária uma abordagem sistémica, bem diferente do “chumba” ou “não chumba”.

Lucília Salgado
Publicado no Jornal de Letras de 1 a 14 de Janeiro de 2020 pg. 5  

 
 
 



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